A Escultura Nômade de Bastón Díaz
O que te move? O que é capaz de criar dentro de ti o ímpeto para seguir e cruzar fronteiras onde tudo se modifica, mas sem perder a sua rota, o seu plano, o rumo e uma criação de princípios? O nômade é a condição existencial daquele que percebe a necessidade de partir em busca de novas perspectivas e saciar-se de alimentos para o corpo e para a alma. O fragmentado, impermanente e sem habitação fixa é aquele cujo estilo e concepção de vida absorve o que a natureza lhe provê e não enxerga na arte da vida senão a impermanência das formas – por isso, ele é avesso a um certo determinismo ou a um destino a elas relacionadas. O nômade não percebe as vicissitudes de seu projeto de outra maneira, exceto como uma constante busca por novas maneiras de se reconstruir. Assim se pode reconhecer na história do pensamento e de grandes personalidades amantes da argentina, mas mortos em exílio ou desterro na Europa, como os líderes nacionalistas Juan Manuel de Rosas (1793-1877) e José de San Martín (1778-1850), entre tantos outros.
O artista argentino Bastón Díaz é o nome por detrás desse projeto nômade, e só aparentemente errante de construção escultórica. Em sua obra, a forma e o pensamento, isto é, concepção e a materialidade do objeto andam juntos. Suas formas fluem para direções livres para sempre voltarem ao desafio do ponto de partida – o conceito, o constructo. O que distingue o nômade do sedentário não é somente a diferença de planos para o corpo que ambos manifestam do seu próprio modo – um seria o residente, o pré-determinado, e o outro seria fluido em mar aberto como sua obra, sedento por novas marés e novos recomeços; mas também os distingue um espírito anterior que os define: enquanto o sedentário absorve a realidade exterior convencido de sua estabilidade, o nômade, por sua vez – com seu espírito inquieto e migratório por excelência -, faz a estabilidade dar lugar a transfiguração.
Com um histórico familiar de imigrantes europeus Bastón reflete em sua obra ideias como impermanência, trânsito, rotas por onde barcos e navios monumentais trouxeram para a América Latina os desdobramentos, continuidades e descontinuidades de uma Europa também impermanente. Nascido em Buenos Aires em 1946, formou-se na “Escola de Artes Manuel Belgrano” (1965) e na “Advanced School of Ars Prilidiano Pueyrredon” (1972). Seguindo o caminho inverso ao de seus nômades ancestrais espanhóis, construtores de barcos e de quem herdou esse “mandato” andarilho, Bastón Díaz foi para a Europa dar continuidade a seus estudos artísticos. Esteve na França durante a maior parte dos anos 70, vindo a encontrar seu metiê como Ferramentarista de Medalhas. Ele estudou na Ecole Nationale Supérieure des Beaux Arts, e frequentou seminários importantes como os do esteta francês Hubert Damish (1928-2017) na Sobornne e fez um curso anual com o filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994) no departamento de artes plásticas da Universidade de Vincennes. Além de dominar as técnicas de cunhagem de medalhas, Bastón Díaz trabalhou com ourivesaria, o que influenciou de alguma maneira a sua abordagem artística e tecnológica posterior por “exigência de ofício”.
A exposição A Escultura Nômade de Bastón Díaz, conflagrada na Galeria Ricardo Von Brusky com esculturas de pequeno, médio e grande porte, faz uma transposição de uma arte pública, resultante do percurso nômade do artista argentino, para uma versão ainda pública, mas adaptada ao formato de estúdio. Ainda assim, vê-se aqui a mesma monumentalidade dos objetos geométricos fragmentados, porém unidos pela assemblage construtiva de Bastón. Essa transposição permite criar um ambiente contido, a partir de onde se pode lançar um olhar mais atento, mais íntimo e em um ambiente mais controlado do que os das praças públicas, onde os transeuntes se acostumaram às instalações de suas obras em países como Argentina, Uruguai, entre outros.
Podemos admirar as obras de Díaz segundo múltiplos aspectos. Destaquemos aqui três dos enfoques principais: Os recursos e materiais que o artista utiliza, ou seja, a matéria-ferro, ou liga metálica base para essa aventura migratória das formas; um enfoque em sua influências e seu desafiante posicionamento perante a história da arte; e, por fim, o enfoque artístico, ou as consequências de sua volumetria e as implicações tecnológicas de sua conduta artística na formação desses “misteriosos” objetos escultóricos.
Bastón Díaz
“Serie de la ribera”, n° 26
Escultura em aço corten
120 x 103 x 128 cm
Bastón Díaz
“Serie de la ribera”, n° 8
Escultura em aço
48 x 57 x 39 cm
Do ponto de vista técnico, o uso de ferramentas de dimensões enormes, superiores às convencionais, modificam a dinâmica tradicional do trabalho manual. A escala massiva direciona a manipulação convencional, deslocando o foco do trabalho de Díaz para uma aplicação de força bruta, com técnica e gestos amplificados. Isso resulta em uma manifestação física de uma volumetria monumental e impactante em que o uso de tecnologia faz parte da dinâmica de execução e da materialidade das obras, mas não deixa transparecer isso no resultado final, em sua leveza visual.
As “ferramentas”, até intuitivamente possuem uma funcionalidade manual. Embora sejam acessíveis, a interatividade com as obras pode ser “enganosa”, pois há formas acopladas, mas não articuladas, há movimentos na inclusão de dobradiças e parafusos, mas esse “movimento” é uma faculdade do pensamento, um esforço pessoal. As dobradiças ganham uma dimensão mágica de união e deslocamento. E esse esforço fazemos juntos com o artista “nômade” em seu impulso de contrariar as forças gravitacionais que “prendem” seus pés e os impedem de seguir o seu caminho. Por meio da imaginação, da ilusão, da fantasia conseguimos nos livrar, ademais, dos limites impostos por um mundo falsamente estável, imóvel, perpétuo.
A arquitetura volumétrica se manifesta também nessas criações por meio do entrelaçamento e interação de planos e diagonais de escape, mas sem perder o foco na realidade concreta. É talvez por isso que Bastón Díaz se encaixa historicamente dentro do construtivismo escultórico – aquele que rejeitou conceber a arte como algo separado do cotidiano. Os elementos arquitetônicos e de design, como transfigurados por Max Bill, Jean Arp e Antón Pevsner, entre outros, são refletidos em seu trabalho por meio do mesmo projeto construtivista: o dinamismo de formas que criam tensões, o uso da linha como um apelo descritivo, uma reflexão do tridimensional a partir da geometria abstrata que evocam cubos, cilindros e esferas, o uso de materiais industriais em assemblage, a elaboração complexa a partir de elementos simples, o uso de planos que explicitam as relações espaciais entre os elementos formais, a expressão do movimento real ou imaginário por meio da cinética, isto é, rotação ou reação das formas e das massas no espaço, e por fim, mas não menos importante, a ênfase que Bastón Díaz dá na estrutura, em vez da representação das figuras naturais, com a criação de objetos que revelam ter uma lógica interna própria e que nos desafiam a compreender e refazer essa lógica mentalmente e espiritualmente.
Do ponto de vista artístico o trabalho de Bastón Díaz explora a ideia de ruptura e de fragmentação. Cada forma se ajusta a outra, mas ao mesmo tempo em que essas formas são ajustadas em blocos fragmentados e aparentemente isolados elas se complementam. A paisagem permanente dá lugar a blocos de construção ainda que não terminados ou definitivamente fixos – não é à toa que o artista deixa sempre um espaço aberto para continuidade construtiva.
A montagem de peças metálicas também é uma arte tecnológica. Bastón Díaz em seu processo criativo, concebe modelos a partir de rascunhos manuais e define planos também por meio de programas de desenho industrial no computador. Posteriormente, a partir do modelo, realiza a construção em ferro ou outras ligas metálicas resistentes as intempéries do tempo.
Essa é uma expressão artística que se apresenta em espaços públicos, buscando envolver as pessoas em ambientes urbanos ou comunitários. Essas peças, que lembram elementos e cascos de barcos, presentes desde a juventude do artista quando estudou projetos de embarcações, têm a capacidade de desafiar os limites das formas dispersas. Tudo aquilo que um dia ficou solto em andanças desencaixadas, passam a ter uma função construtiva. E esse é o principal desafio lançado pelas obras de Bastón Díaz: como encontrar a unidade na diversidade? Como conceber uma superfície ou espaço onde todos os objetos dispersos possam se comunicar?
O artista, com a segurança de quem já perambulou muito por esses caminhos, transforma essa dispersão aparente buscando a unidade entre esses fragmentos, a junção do elo desgarrado, o encontro das formas escultórica nômades, antes errantes e perdidas transformam-se agora diante dos nossos olhos em um conjunto belo e unificado.
Renato Araújo da Silva