Animais Fantásticos do Brasil
A Tradução Artística dos Animais Fantásticos do Brasil
Quando sertanistas como Marechal Rondon e indigenistas como Irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas e Darcy Ribeiro, entre tantos outros protetores das florestas e dos indígenas corajosamente enfrentaram a realidade das matas brasileiras, eles não deviam sequer imaginar o quanto seriam também tomados pela importância do extraordinário no mundo que desbravavam e que, de uma forma ou de outra, também ajudaram a publicizar. Foi nesse mesmo mundo tão artisticamente vivaz, em sua abundância de cores e de formas de vida que a aparição de animais fantásticos nos forçou a lançar um olhar diferente ao fenômeno do cotidiano das matas.
A natureza fala. E quando ela fala ela se exprime em cores nesse universo que é mais ricamente compreendido em sua profundidade quando nosso mundo artístico é visto de forma indistinta do mundo natural. Ou seja, do ponto de vista humano, não há diferença entre a floresta e a cidade, entre a natureza e a cultura, entre o indígena e o não-indígena. Quem nos une e nos sustenta é essa mesma natureza que abraça a todos. Ela traduz o que quer comunicar com seus seres fantásticos por instrumentos de mistérios e estórias.
O diálogo proposto aqui na Galeria Ricardo Von Brusky entre o mundo animal e o mundo humano, com obras de artistas como Jair Gabriel, Adão de Lourdes, Antônio Julião, escoltados por bancos na forma de animais produzidos por artistas de alguns povos do território indígena do Xingu é uma conversação entre o mundo real e o fenômeno do extraordinário, entre o que vemos e o que a natureza nos quer comunicar. Sabemos da oposição possível entre o mundo habitual expresso e mundo fantástico velado, mas essas formas artísticas são misturas de formas e de cores, de conhecimento e segredos que os xamãs e os artistas, com suas estórias e telas, com seus contos e esculturas são capazes de nos fazer ver com o coração e acreditar nos nossos próprios olhos.
Entre todas as estórias contadas ao redor de fogueiras pelos nossos antepassados indígenas, as que mais nos empolgam são aquelas que incluem seres fantásticos e animais. O boto cor-de-rosa se torna um jovem sedutor capaz de engravidar meninas lindas e desavisadas, a indígena Iara é jogada ao rio para morrer, mas se transforma em uma irresistível sereia que, com ajuda dos peixes e das profundezas do rio inconsciente, atrai aos homens que, se conseguirem escapar de seus encantos, enlouquecem. Igualmente loucos aqueles que acham que poderiam desmatar a natureza sem se verem com a Boitatá, a poderosa cobra de fogo que não enxerga de dia, mas protege as florestas à noite. São essas belas imagens que, transmitidas de geração em geração traduzem os segredos que a natureza nos quer revelar.
Jair Gabriel, artista da floresta Amazônica, traz de sua velha Rondônia o teor manifesto das matas e seus segredos. Dono de uma técnica obstinada que o permite enxergar o fenômeno do volume através do pontilhismo, ele enfeitiça. Na chamada mistura óptica o observador enxerga cores completamente distintas ao se aproximar ou se afastar das telas de Jair Gabriel. A natureza, em sua inclinação para se manter oculta mostra-se como algo intrinsecamente enigmático, graças a intermediação própria de um pajé. Para ouvi-la são necessários o silêncio interior e o cuidado de fazer essa aproximação de tipo artístico – a pintura de pontos ou divisionismo é uma dedicação pontual; a observação visual destas obras também: cada elemento está para a composição assim como o ponto está para a superfície da linha, ainda que essa linha seja feita abstratamente por nós, sobretudo usando a imaginação. Cada um dos lagartos, peixes, pássaros, borboletas, formigas, todos os animais, reais e fantásticos, estão em uniformidade e coesão com homens, árvores e plantas artísticas nessa dança de cores. Esse arranjo proposto por Gabriel é uma conciliação, a comunhão dos seres do mundo natural.
Jair Gabriel
No Caminho
Acrílica sobre tela
2023
60 x 60 cm
Jair Gabriel
Jubilo
Acrílica sobre tela
2023
70 x 80 cm
Em Adão de Lourdes, por sua vez, essa mesma comunicação se dá de forma construtiva. Erigindo mais totens que tabus, sua obra apresenta não só a importância do que está mais próximo do topo, mas a construção que nos leva até ele. Mais uma vez a natureza fala e a conciliação se realiza. Na construção, animais são associados a homens e, como ocorre com Jair Gabriel tudo gira em torno da tradução artística das mensagens do reino natural.
Antônio Julião, também totêmico esculpe macacos, pássaros, anta, tatu que se revelam, como na arte africana, a partir de um bloco único de madeira. Os poliglotas africanos, ancestrais de raízes profundas também tinham planos de fazer tradução do que, em suas lendas e mitos, emitiam a voz da natureza. Quando uniam agrupamento de seres em lápides e pedestais, queriam exprimir a ligação umbilical que nos liga a todos em forma de colunas: desde a criança ou o ser biológico mais novo, na base, até o mais antigo, no topo. Como a metáfora do crescimento da árvore, os animais fantásticos de Antônio Julião se multiplicam formando o circuito da abundância do reino natural com suas formas delgadas e suas veias atraentes num totêmico falo de um tronco esculpido.
Detalhe da obra anterior
(Antônio Julião )
Enfim, os bancos, frutos da cosmovisão de povos como os mehinaku, kamayurá, entre outros, sendo símbolos da comunicação com o mundo invisível, mostram, por fim, que o cotidiano não se opõe ao mundo extraordinário. Os mistérios trazidos pela cultura indígena, seus conhecimentos milenares, sua integração sustentável com as florestas e com os animais encurtam a ponte que nos afasta dessa nossa exuberante identidade com o mundo natural de onde todos saímos e onde, afinal, todos permanecemos, se bem ouvirmos o que a mãe natureza quer nos dizer.
A memória, a comunicação, o apoio mútuo, a sociabilidade, e a busca da harmonia e equilíbrio são os conceitos chaves para a tradução dessa linguagem do esplêndido e desses animais fantásticos no espelho diante de todos nós.
Renato Araújo da Silva