Japão: do antigo ao contemporâneo
CURADORIA POR ANA CAROLINA RALSTON
“Nós, orientais, criamos sombras em
qualquer lugar e, em seguida, a beleza”
Em louvor da sombra, Junichiro Tanizaki
Era o ano de 1936. Tomie Ohtake (1913-2015) desembarcava em terras brasileiras, mais especificamente no Porto de Santos, em São Paulo, poucos anos antes da Segunda Guerra Mundial. A Europa e a Ásia já apresentavam seus primeiros sintomas do forte embate que estava por vir e a futura artista foi enviada pela família em visita ao irmão, que já morava no país tropical. Ao colocar os pés em solo nacional, a sensação foi imediata: “Tudo era amarelo, até o gosto”, relembrou ela ao descrever a paisagem que encontrou ao sair do navio. Não à toa, a cor amarela, e, em seguida, a vermelha, tão temidas por pintores de vanguarda da época, tornaram-se frequentes em suas telas. São dela duas das obras que compõem agora a exposição “Japão: do antigo ao contemporâneo”, em cartaz na Galeria Ricardo Von Brusky, em São Paulo.
As linhas criadas por Tomie Ohtake funcionam como um elo potente que interliga os dois âmbitos que compõem a mostra vigente, o antigo e o contemporâneo, acessados por gêneros distintos que vão da gravura à pintura, passando por variadas formas do tridimensional. Os materiais utilizados na produção artística exibida nas salas da galeria, localizada no Jardim Paulista, são tão presentes na cultura japonesa quanto diversos. Vão do aço e metal às cerâmicas, passando por lápis e tintas, pinceladas por nisseis e sanseis que guardam a marca e a cultura arraigadas em sua ancestralidade.
Logo na entrada da exposição, os olhos dos visitantes são levados a uma impactante galeria de armaduras de samurais de épocas distantes, que transitam entre os séculos XVI ao início do XIX. As composições originais de coleção particular remontam a história destes personagens históricos, guerreiros de poderosos clãs do Japão feudal, que até hoje povoam o imaginário oriente-ocidente. Entre as relíquias que compõem a mostra está um biombo do Período Edo (1603–1868), pelo qual também é possível revisitar a lenda do samurai sem cabeça, associado ao célebre guerreiro Taira no Masakado. Tido como o primeiro samurai, Masakado viveu no Período Heian (795-1185) e liderou uma das famosas rebeliões contra o governo central de Kyoto. Espadas e punhais datados do século XIV a XVIII compõe este ambiente da mostra, rodeando os visitantes por objetos usados em combatentes à época.
Entre o período moderno e contemporâneo da produção japonesa e nipo-brasileira foram reunidos artistas que, assim como Tomie Ohtake, norteiam a produção pictórica, seja pelo primoroso estudo de cores ou pelo rigor de seu traço e pesquisa, como Tadashi Kaminagai (1899-1982), Manabu Mabe (1924-1997), Tikashi Fukushima (1920-2001), Tomoshige Kusuno e Flavio-Shiró.
Para representar o vínculo entre a tradicional arte da queima de argila para a produção de recipientes presente desde o Japão profundo – uma das mais antigas da humanidade –, compõem a mostra raras cerâmicas da Período Edo e Meiji (1868–1912) em contraponto a peças da escultora e ceramista Kimi Nii, com criações que reverberam tanto em objetos e utilitários a obras de grande porte, explorando recursos ocidentais em direção aos limites do material. Entre as peças escultóricas estão também figuras feitas em marfim durante a Era Meiji, período em que tal matéria-prima era utilizada com frequência por artistas e artesões.
Liderando a prolifica leva de artistas contemporâneos que movimentam a cultura nipônica pelo mundo está Oscar Oiwa, autor de pinturas, desenhos, gravuras e grandes instalações interativas que transportam o expectador pelo imaginário oriental, colocando-nos em confronto com a inocência perdida e a imponência da vida nas grandes metrópoles. De sua fecunda produção, caminhamos em direção a jovens e promissores nomes da arte atual, que flertam do muralismo ao figurativismo abstrato. “A singularidade do trabalho de arte é idêntica a seu modo de se incrustar no contexto da tradição”, disse Walter Benjamin. É desta forma, ancorados pela ancestralidade e perplexos pela unicidade do ser, que se desvenda a mostra a seguir, unindo o Japão desde o oriente ao ocidente atual.
Ana Carolina Ralston
Curadora