JUAN LECUONA
Texto crítico por Rafael Vogt Maia Rosa
Um sobrevoo sobre a produção de Juan Lecuona, partindo de seus trabalhos do final da década de 1970 até essa sua serie mais recente, “Inútil Paisagem” (2018), deve registrar que em sua poética persistem diversos procedimentos pictóricos e escultóricos, simultaneamente, ou alternados em suas fases e series: gestualidade, projeções, recortes, deslocamentos, apagamentos, sobreposições, diluições, impressões, transferências, encaixes, dobras, o desenho diretamente sobre a tela. Bem mais difícil será a detecção de ruptura ou corte abrupto em alguma parte de sua trajetória até aqui.
Como se celebrando a noção de Jean-Luc Nancy de que “o vazio é a vida”, as idas e vindas de Lecuona em relação a uma abstração pura ou uma figuração que não chega a representar algo acabam por posicioná-lo a uma equidistância de conflitos em outros casos tidos como terminais. A figura, em seu caso, parece ocorrer pela ausência efetiva de um elemento representado, é também uma espécie de abstração. Ou, essa mesma dinâmica pode incorrer em um contraste incontornável do ponto de vista da substância, como a da flor de leite, matriz de suas flores de chumbo, continua sendo algo que oscila integralmente, sem se desconstruir. Da mesma maneira, há uma sustentação de um emblema frugal a partir de uma linha que parecia de uma profundidade absurda, como a dos cortes de Lucio Fontana, mas que ele devolve ao espectador como signo pictórico “purificado” de uma relação com o real, mediado apenas pela pintura que dispensou ali.
Na comparação sumária com outros casos envolvendo a “volta da pintura” ao redor do mundo, a Transvanguarda, da qual é protagonista, não podemos deixar de falar sem ressalvas, em seu caso, sobre uma tentativa de síntese da investigação dos limites do suporte ou em uma “nova figuração” concomitante, possivelmente mais “conceitual”, de algum modo coincidente com a esperança de abertura política nos anos 80. Por outro lado, parece que há tudo isso em jogo, só que em uma intensidade e dinâmica que não conspiram necessariamente para uma “superação” de qualquer natureza.
Lembramos aqui da instalação em homenagem a Nelson Rodrigues que o artista fez em Buenos Aires, em uma de suas várias incursões pela cultura brasileira. Recuperada, hoje, por conjunto de fotografias em preto e branco, “Vestido de Noiva” (2006) mostra anodinia e estetização consumadas nos rostos dos manequins femininos. O trabalho revela-se como uma cena misteriosa e sintética, um melodrama cristalizado. Esse seu “grande vidro”, por outro lado, como em paródia borgeana da obra magna de Duchamp, multiplica a noiva e particulariza os celibatários e isso permite observar um exemplo das transformações avessas à descontinuidade que marcam seu processo. Pois, no vazio dos corpos ausentes, os véus estão bordados com o seu motivo predileto, musas tímidas e potentes em um campo acolhedor cuja iconicidade antecipa todos os recortes, transferências, apropriações como se emergindo e submergindo assim no domínio pictórico.
A presente exposição é uma mostra concisa desse lugar “discreto” e singular. De um quarto de hotel, ou em outro lugar da cidade, o artista encara as janelas que determinam uma introspecção. Busca, do zero, a beleza desinteressada que não reflete uma natureza efusiva como a Guanabara, uma vez no Brasil, não se presta a tipificar nada. Em seu lugar, deseja a luminosidade local com acabamento metafísico na transição daquilo que ainda não podemos decidir simplesmente se figurativo ou abstrato, como o espaço recortado pelo qual penetra o sol da manhã.
É oportuno lembrar notar que Lecuona esteve envolvido com a dissolução de um estilo e conceito de autoria na época em que integrou o grupo Babel, quando também em São Paulo e no Rio, em 1986, com teatralizações coletivas em torno da pintura, no Museu de Arte Moderna. E que, uma de suas exposições tem como elemento dominante o apagamento, um pintar tátil que faz toda a intencionalidade e sentido de sua exposição convergirem para essa releitura, um gesto interpretativo cuja parcialidade atenção ao resto acaba definindo metonimicamente o todo. Ele tem segurança de que, mesmo no escuro, ele sempre pode caminhar até os fundos de um quintal familiar e colher lá a mesma flor da infância.