LINGUAGENS URBANAS​

FEFE

As pinturas de monstros de Fefe Talavera são metáforas de emoções fortes do subconsciente humano, como raiva, medo, sonhos ou desejos. Os animais fantásticos e coloridos que ela conecta com o “lado negro” do seu eu interior, representam as raízes culturais da artista, bem como a energia primária e poderosa de seu trabalho executado nas ruas de várias cidades em todo o mundo.

Nascida em 1979, Fefe foi criada em um meio nativo do México, e no Brasil na cidade de São Paulo, onde vive até hoje, além de uma segunda casa em Madri, Espanha. Interessada em todos os tipos de movimentos underground, típica e única liberdade estilística da Street Art, de renome internacional, e o grafite, acabaram por criar uma impressão importante sobre a artista. Desta forma, sua energia criativa bruta, encontrou muito mais correspondência neste ambiente tribal, como o estilo que ela desenvolveu durante o trabalho nas ruas, auxiliada pelos estudos em artes plásticas que ela terminou com um Bacharelado na FAAP, em São Paulo.

Mostras em galerias aceitando certas regras, limites e intolerâncias do sistema do mercado de arte, representam uma contradição para Fefe, que está interessada principalmente em encontrar formas públicas de expressar-se e uma forma comum de comunicação. Quanto a outros artistas de sua geração, ela percebe São Paulo como uma megalópole contemporânea abalada por problemas sociais, econômicos e ecológicos que tiveram um impacto prejudicial sobre a paisagem urbana. As paredes públicas, assim, continuam a ser uma possibilidade de mostrar o que é belo “dentro” das fortes personalidades das pessoas que lá vivem. Street Art e Grafite na América do Sul e Central podem muito bem ser entendidas na tradição da arte mural política e sociológica, as quais, com certeza refletem a vida urbana contemporânea, “Murales”. Fefe, inspirada por mitologias Maia e Asteca de sua herança mexicana, é mais conhecida por seus monstros executados com letras recortadas de cartazes populares, encontrados ao redor das ruas.

As colagens feitas com letras e números estão relacionadas com a admiração da artista pela tipografia, livros e gravuras, mas também, por sua vontade, através de uma forma “livre”, de retirá-los se seus ambientes fixos, como palavras, frases ou textos e livros, para poder mostrar as suas qualidades formais, bem como lembrar-nos de que todo tipo de linguagem está enraizada na expressão direta do ser humano e não em uma função para comandá-los.

Fefe expôs e participou de projetos individuais ou em grupo em São Paulo, Moscou, Los Angeles, Nova Iorque, Washington DC, Berlim, Lisboa, Ottawa, Viena, Madrid, Barcelona, Bilbao, Sevilha, Basileia, Milão, Amsterdã.

GITAHY

Celso Gitahy, artista plástico nascido e residente na cidade de São Paulo, graduado pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Mestrado em Arte Contemporânea e Docência no Ensino Superior pela Universidade Camilo Castelo Branco. Iniciou sua produção artística na década de 1980, participando de salões de arte contemporânea com desenho, pintura, instalação e, na cidade de São Paulo, com grafites. No início dos anos 1990, com o apoio da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo cria o projeto: “O Graffiti é Legal”, com o objetivo de transmitir conhecimentos e experiências artísticas a jovens estudantes da rede pública de ensino, obtendo atenção dos principais veículos de mídia do país.

Seu universo de imagens é composto por ícones de consumo misturados com o homem e a natureza, criando metáforas visuais com nuances críticas, irônicas e bem-humoradas. 

Participou de várias exposições no Brasil e em países como França, Hungria, Austrália, Alemanha, Estados Unidos, entre outros. Além de outras publicações, é autor do livro “O que é Graffiti” da Coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense. 

Atualmente, além de trabalhar com galerias de arte, desde a década de 1980 utiliza o espaço público como suporte para suas obras. Vive e trabalha em São Paulo.

ORION

Alexandre Orion nasceu em 1978 e é artista multimídia. Sua atividade artística teve início em 1992 sob influência da cultura urbana e do universo do grafite. Em pouco tempo, Orion se destacou do movimento do qual fazia parte e passou a interagir com a cidade de uma maneira muito singular. Nas palavras do próprio artista, “a cidade é carregada de significados”. 

É exatamente com esses significados, muitas vezes sutis, que o artista trabalha, pesquisando técnicas e explorando o que a cidade oculta, interagindo com os passantes, criando embates com o poder público, tornando-os parte de sua obra artística.

Orion realizou exposições individuais nas principais capitais do mundo. No Brasil suas obras foram exibidas em espaços como Centro Cultural Banco do Brasil, Itaú Cultural, Centro Cultural da Caixa e Pinacoteca do Estado de São Paulo. Tem entrevistas e textos publicados em mais de 10 línguas, nos principais veículos de imprensa do mundo e obras publicadas pelas editoras Thames and Hudson, Taschen, Éditions de la Martinière, Phaidon, Die Gestalten, Daab, Laurence King Publishers, Edelbra, Rotovision, Moderna, Dokument Press, FTD, University of Toronto Press, Saraiva, Sigongart, Vivays Publishing, Tamesis, Nova Fronteira.

Realizou exposições e possui obras nos acervos da Foundation Cartier pour l’art contemporain, em Paris, Pinacoteca do Estado de São Paulo, do Centrum Beeldende Kunst de Rotterdam, Itaú Cultural, Deustche Bank e Mad Museum, ambos em Nova Iorque, Milwaukee Museum, Fundação Padre Anchieta, Nelson-Atkins Museum of Art, Spencer Museum of Art, Schrin Kunsthalle entre muitos outros.

ZEZÃO

José Augusto Amaro Handa, Zezão, começou na década de 1990 a ocupar com os seus grafites os espaços subterrâneos da cidade de São Paulo. 

Inspirado pela arte de Jean-Michel Basquiat, Zezão sentiu-se motivado a abandonar as vias tradicionais para, com sua arte, percorrer novos caminhos. Passou a trabalhar em paredes de canais de esgoto e de galerias de águas pluviais, entre dejetos acumulados em casas abandonadas, em becos desertos e em vãos debaixo de viadutos, atraindo a atenção para paisagens urbanas insólitas, as quais muita gente não quer ver nem saber.

Para executar suas pinturas e colagens tem se utilizado de pedaços quebrados de madeira, provenientes de tapumes, barricadas e construções abandonadas nas cidades por onde passa. Às vezes também compõe sua obra em “preciosidades” como: espelhos, bandejas, portas de automóvel, armações de cama etc., deixando sua marca pessoal que consiste da palavra vício em abstrata caligrafia na cor azul. Mergulha com sua cor e formas delicadas num submundo cru e caótico, invade os espaços subterrâneos criando um contraste entre a rusticidade das paredes e a delicadeza de límpidos tons de azul. Assim, interfere na suposta “vida real”, tornando visível aquilo que, sem a sua arte, não seria visto nem percebido. 

Faz arte junto ao lixo, a animais mortos, a águas putrefatas, a restos de móveis e de utensílios quebrados, a objetos descartados, em ambientes escuros e sombrios, nas construções arruinadas prestes a serem demolidas, na sujeira, no ar poluído, numa abordagem crítica da violência urbana e dos graves problemas das grandes cidades contemporâneas, provocando o diálogo e a discussão sobre o mundo marginal e o mundo à superfície que vivemos, estimulando também o debate sobre reciclagem e sustentabilidade.

Expande sua produção artística retirando objetos do lixo e da sucata, reformando e montando de formas diferentes, dando-lhes cor e nova identidade. 

Suas pinturas dão cor e visibilidade a muros nas periferias, a canais de esgoto, a paredes de viadutos de diversas cidades do mundo como São Francisco, Los Angeles, Nova Iorque, Florença, Milão, Paris, Londres e tantas outras. Expõe suas obras com frequência no Brasil e em outros países como Itália, França, Alemanha, Estados Unidos, Suíça e Argentina.

reviews

José Roberto Teixeira Leite

Crítico de arte

Fiel ao programa que se impôs desde a inauguração – oferecer a visitantes, amadores e colecionadores de arte em geral, sem preconceitos nem exclusividades, manifestações artísticas que se destaquem pela qualidade e invenção -, a Galeria de Arte Ricardo von Brüsky e Cacá Nóbrega hoje orgulhosamente apresenta a obra de quatro importantes artistas, cada qual articulando linguagem própria e todos com largo tirocínio e não menor reconhecimento – inclusive a nível internacional -, não fossem eles figuras exponenciais da Street Art, tendência da arte ocidental que, avessa a meios expressivos, gêneros e técnicas tradicionais, utiliza muros, paredões, túneis, viadutos, desvãos, córregos, becos escusos e prédios abandonados, ruínas, veículos e, em poucas palavras, a Cidade em todos os seus meandros e sob os mais diversos ângulos, como suporte para expressar emoções, sentimentos, anseios e frustrações, para isso fazendo uso das mais variadas técnicas. 

Esta é uma exposição por todos os motivos oportuna, pois acontece no momento em que as vanguardas artísticas parecem próximas do esgotamento, e em que se revelam inócuas todas essas estéticas do pós-pós que ainda teimam em dominar nossas artes visuais, hoje reduzidas, salvo raríssimas exceções, a um mero jogo de propostas repetitivas e vazias de significado ou sentido. Na verdade, talvez resida nessa arte que vem da rua aquela sabedoria que propõe a redenção da Terra pela nudeza imensa da simplicidade do saber popular e natural de que tratou Bené Fonteles em 2001, no manifesto “Antes arte do que tarde”, no qual entre tantas outras coisas que levam a pensar, ele se rebela contra “mais um cd sem amor à música, mais um teatro absurdo sem serviço à consciência planetária ou mais um balé para dançar narciso”, e indaga:

– Que espécie de seres são estes que deixam-se guiar mais por teorias estéticas pensadas na academia do que por suas intuições e vivências solidárias e responsáveis com o povo do seu país, a Natureza e a universalidade do planeta?

Pois bem: são de outra espécie muito diferente os artistas que aqui hoje expõem, todos nascidos e ativos em São Paulo – não fosse essa megalópole uma das mecas da Street Art mundial. São eles Fefê (Fernanda Salinas Talavera), Zezão (José Augusto Amaro Handa), Órion (Alexandre Órion) e Celso (Celso Gitahy).

Dois dos quatro expositores – Fefê e Celso – passaram por aprendizagem artística regular, ela na FAAP, ele na Faculdade de Belas Artes de São Paulo: um e outro fazem questão no entanto de deixar bem claro, nisso iguais aos dois outros expositores, que tudo quanto de fato aprenderam e buscam expressar foram encontrar na rua, adveio-lhes do tremendo choque sentido ante a realidade brutal que a cidade grande ofereceu a seus olhos, do impacto que lhes causaram os contrastes sociais, da perturbadora percepção de cenários e temas que academia alguma seria capaz sequer de imaginar. 

Não fosse filha de mexicanos, pelo mundo de ideias de Fefê perpassam dragões e monstros alados, animais de remotas mitologias saídos de sonhos e materializados numa profusão  de formas e cores, sem falar nas cabeças separadas dos corpos, quem sabe em algum ritual primitivo: em tais momentos, é como se um demônio azteca a tomasse pela mão. Mas a artista sabe mesclar esse fabulário ancestral a elementos da cultura urbana brasileira, e o resultado é um convite ao espectador para que mergulhe num mundo regido por forças atávicas e pelos pulsares da cidade, sem que em nenhum momento se altere o elevado nível artístico em que se desenvolve toda a sua produção.

Celso, dos primeiros a adotar a arte de rua no Brasil, ainda na década de 1980, desde então vem dando prioridade ao estêncil para expressar um rico vocabulário plástico, dominado por tv-nautas e outros seres híbridos – corpos humanos ou de cães, cobras, tigres, golfinhos e de outros animais, cujas cabeças foram substituídas por carros, monitores de televisão, motores e todo tipo de maquinária. É esse o modo que ele encontrou para denunciar o Homem-Máquina, obcecado pela parafernália mecânica que hoje tem a seu dispor, e que pensa dominar, quando em verdade é por ela dominado. Mas de várias outras técnicas serve-se Celso Gitahy, que não hesitou por exemplo em transformar um velho fusca em ambulância, em cujas janelas são projetadas bulas de remédio.

Para o veterano escriba das artes que assina o presente texto, e que (para citar Pessoa), ao longo de décadas já “viu como um danado” , a obra de Alexandre Órion é a prova cabal de que ainda lhe resta muito por ver. Surpreendeu-o, de fato, ver alguém que emprega como material artístico a própria poluição da cidade, e que inventou a polugrafia, técnica que utiliza a poluição causada ao meio ambiente pelos escapamentos dos caminhões para criar um novo tipo de gravura. Foi desbastando a espessa camada de fuligem acumulada ao longo do tempo nas paredes dos tuneis paulistanos que Órion criou  “Ossário”, macabro amontoado de caveiras cujas órbitas vazias parecem fitar-nos, ou então “Memo”, uma assembleia de espectros a nos observar em atitude de evidente reprovação. Mas não ficou nisso a criatividade de Órion: em “Vergonha na cara”, por exemplo, foi com bitucas ou guimbas de cigarro que ele trabalhou. 

Como o peludo artista que há 40 mil anos povoou de bisões Altamira, ou como o anônimo pintor que nos primeiros tempos do Cristianismo deixou nas catacumbas os símbolos e emblemas de sua fé, Zezão mergulhou nas profundezas de São Paulo para criar em esgotos e galerias de águas pluviais seu museu pelo avesso, junto a animais mortos, dejetos e detritos de toda espécie. Nas fétidas paredes desses lugares ele deixou sua marca: os belos grafismos azulados de um alfabeto por ele inventado. Não satisfeito, levou para a luz do dia tais dejetos, combinando-os de forma a com eles, em inéditas montagens, mostrar o lado obscuro da cidade, suas entranhas por assim dizer.

Esses os quatro artistas de que hoje nos ocupamos; e que os visitantes possam experimentar, diante de suas obras, a mesma estranha emoção que a nós causaram.

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